Helenismo e Virtude: Papo CAFONA?

Seria mesmo extravagância acadêmica ou discurso vazio um politeísta helênico ficar falando em virtude por aí? Ou teria esse tipo de discussão fundamento na tradição grega ancestral? Eis o assunto deste post.

A.Demétrios H.S.R.

2/15/20257 min read

"Pelo digno nome Excelência, Ela é chamada"

(Fragmento órfico 175, em referência à deusa Atena como a encarnação da Virtude/Excelência. Traduzido do grego para o inglês por Thomas Taylor.)

Esses dias vi um post no Instagram criticando quem muito fala de virtude (com a figura de um filósofo grego no fundo) porém não cumprimenta nem o porteiro. A postagem foi de uma perfil pagão, logo, imagino se referia a integrantes da nossa “bolha” neopagã. Posso estar equivocado, mas o caso irá servir.

Noutra ocasião, li críticas sobre os praticantes do politeísmo helênico serem moralistas e buscarem uma releitura mais “clean” da religião (aqui se refere aos pontos de vista contrários a possibilidade do retorno ao sacrifício animal).

Antes de prosseguir, precisamos da definição de uma das palavras utilizadas no título deste artigo:

CAFONA: 1 Que ou aquele que se caracteriza pela falta de bom gosto, aparência extremamente convencional e desatualizada, principalmente ao trajar-se, revelando falta de sofisticação e de elegância; brega: “A humanidade não pode viver sem um clichê. Ele reforça o paladar com um sabor cafona muito especial” (LA3).

2 Que ou aquele que se enfeita ou se arruma de maneira ridícula, espalhafatosa, marcadamente vulgar e de mau gosto; brega: “[…] Mesmo cafona e excessivamente maquiada, continua uma mulher charmosa” (RN).

3 Indivíduo sem refinamento, simplório; possidônio, provinciano, suburbano.

(Dicionário Michaelis On-line)

Quando alguém de fora ou de dentro da “bolha” neopagã philohelênica critica nossas falas sobre Virtude, tenho a impressão de que esse assunto é visto pelo grande público como CAFONA.

Buenas.

Na tradição helênica ancestral, existe um elemento chave, tão central quanto a deusa Héstia é no panteão, que se chama Areté.

“Como princípio formativo da paideia grega, o conceito de areté (virtude) referia-se, em termos gerais, a um ideal de excelência humana. Inicialmente ligado à antiga cultura aristocrática, restrita à nobreza, teve como paradigma as figuras exemplares de deuses e heróis. No período clássico, a virtude foi redefinida pelos sofistas, visando atender às necessidades educativas da polis, por meio do ensino da areté política, centrada na retórica. No mesmo período, a filosofia platônica concebeu a virtude como um ideal moral, resultado da relação entre uma boa natureza e uma boa educação. À educação competia gerir os impulsos contraditórios da alma, harmonizando-os, pela superação do antagonismo entre razão e paixões. Estas distintas visões formativas coexistiram no período clássico, atestando a riqueza cultural da antiga Grécia.”

(Lídia Maria Rodrigo)

Areté (Excelência): “O ponto máximo de aperfeiçoamento que um determinado ser pode alcançar”. De acordo com um grande e já falecido membro do grupo étnico helênico YSEE, Vlassis Rassias, o sentido da vida humana para o helenismo não é a ideia dominante e cristã de salvação da alma. E sim a busca por uma vida digna, honrada e pelo desejo de liberdade, conforme a Razão. A plenitude do ser humano. E para isso, o Hellenismo, através do sistema de valores baseado na Areté, visa formar um ser humano autônomo, que tenha autodomínio, e portanto não poder ser facilmente controlado por agentes externos. Areté tem sido traduzida por "Virtude". "Excelência" é outra possível tradução, talvez mais adequada e livre da sombra da moralidade cristã. "Força", "Qualidade de destaque” são outros sentidos. Além do campo ético, Areté também abrange características intelectuais e corporais que se sobressaem em algo ou alguém: Inteligência, Beleza, Perspicácia, Saúde, etc.

Areté é um dos mais importantes conceitos da tradição helênica, cujo significado foi ampliado ao longo da história. Nas origens se referia a excelência do guerreiro e seus valores superlativos, "o mais bravo", "o mais nobre", etc. Nos tempos da consolidação da estrutura da Pólis, outras Aretai (plural de Areté) se tornam baluartes da vida em comunidade: Dike (Justiça ou Direito), o Metron (a justa medida), Eusebeia (a Piedade), Sophrosyne (autocontrole ou temperança), entre outras. A Filosofia, por sua vez, se encarregou do assunto com verdadeiro afinco, de tão essencial conceito se tratava para os antigos. Para os grandes expoentes do Hellenismo, a vida eudaimonica (feliz ou bem-aventurada, realizada) necessariamente se dá nos caminhos da Areté. (www.hierokrithari.com.br )

Os estoicos elaboraram uma taxonomia detalhada da virtude, dividindo a virtude em quatro tipos principais: sabedoria, justiça, coragem e moderação. A sabedoria é subdividida em bom senso, bom cálculo, perspicácia, discrição e desenvoltura. A justiça é subdividida em piedade, honestidade, equidade e negociação justa. A coragem é subdividida em resistência, confiança, nobreza, alegria e laboriosidade. A moderação é subdividida em boa disciplina, decoro, modéstia e autocontrole. Da mesma forma, os estoicos dividem o vício em tolice, injustiça, covardia, intemperança e o resto. Os estoicos sustentavam ainda que as virtudes são interligadas e constituem uma unidade: ter uma é ter todas elas. Eles sustentavam que a mesma mente virtuosa é sábia, justa, corajosa e moderada. Assim, a pessoa virtuosa é disposta de uma certa maneira com relação a cada uma das virtudes individuais. Para apoiar sua doutrina da unidade da virtude, os estóicos ofereceram uma analogia: assim como alguém é poeta, orador e general, mas ainda é um indivíduo, também as virtudes são unificadas, mas se aplicam a diferentes esferas de ação.

(William O. Stephens no artigo sobre estoicismo para o site Stoic Ethics | Internet Encyclopedia of Philosophy. )

Quando você estuda o bastante sobre a tradição helênica, percebe que Areté é um tema recorrente, amplamente revelado pela extensa literatura original de que temos acesso. Dos maiores poetas, Homero enaltecia as aretai aristocráticas e guerreiras, e por sua vez Hesíodo evidenciava as do homem do campo. E através da sagrada Philosophia, Areté atingiu alturas inimagináveis, para não dizer, transcendentais. No linguajar moderno popular, este pilar do helenismo foi “espiritualizado”.

Portanto, é perfeitamente razoável que politeístas helênicos se apropriem com frequência dessas mesmas reflexões, pois é parte das práticas e convicções. Estranho seria o helenista que ignora a relevância disso.

"Honra os Deuses cujo culto os antepassados nos legaram; fica certo, porém, que a melhor oferenda que lhes podes levar e a melhor maneira de honrares e venerares os deuses consiste em seres o melhor e o mais justo possível."

(Isócrates, o Pai da Retórica)

Por outro lado, preciso concordar com as críticas e isso vale para qualquer esfera social em que transitamos: não adianta discorrer horas sobre Excelência/Virtude (em especial nas redes sociais, onde ocorrem as “tretas” e “ranços”) e no dia-a-dia, no trato com as pessoas da família, trabalho, desconhecidos, ou outros seres, meio ambiente e nada disso se concretizar.

A Philosophia é a nossa Mestra na direção da Areté, que por sua vez, é totalmente prática. Tendo como base algumas das Excelências helênicas, o que seria o ser humano virtuoso (ou excelente)? Racional (ou Pensante e Consciente), Temperante, Discernidor, Justo e Piedoso. E como adquirimos estas virtudes? Na prática, com certeza, e não no mero falar.

É cafonice enaltecer a Justiça como nossos antepassados de tradição faziam e desejar ser mais Justos em nossas ações? É cafonice buscar ser Temperante em meio ao caos social que vivemos, onde reina o descontrole disfarçado de “intensidade”? É cafona sermos discernidores, saber distinguir o certo do errado? Pois é isso que o Helenismo nos propõe e precisamos discutir esses assuntos de modo a concretizá-los na vida cotidiana.

Para além da praticidade da existência terrestre, conforme já comentado em algum outro post, buscar uma vida excelente se cruza com a teologia helênica inúmeras vezes nos ramos filosóficos. Por exemplo, para Aristóteles “os homens se tornam deuses por superabundância de excelência” (Ética a Nicômacos, Livro 7). Ao longo da história do pensamento helênico, a Excelência, além de ser divina por si mesma, se torna cada vez mais apoteótica.

E, muito importante: já notaram que Filosofia -grega- é amplamente divulgada nos conteúdos do Hiero, a ponto de chamarem nosso grupo de “grupo filosófico” ou algo semelhante. Normalmente as pessoas relegam os Filósofos à “última classe da turma”, e eu fiz isso no início da minha jornada helênica, e ignoram o poder e extensão da Filosofia na cultura grega. É repetitivo, porém, muita gente continua a ignorar. Certamente não é obrigatório seguir alguma escola filosófica. De modo geral, A Filosofia não visou destruir as práticas religiosas, e sim refinar as crenças e ideias, tanto que Teologia é uma das principais “matérias” dos antigos filósofos. E mais: quando citamos um filósofo em especial, não pense em um indivíduo isolado do mundo. Imagine os vários nomes conhecidos vinculados a cada escola, fora as centenas de estudantes anônimos. Então, por exemplo, quando menciono “ah, Platão…”, lembre-se que uma multidão de gregos frequentavam sua Academia e compartilhavam suas idéias, total ou parcialmente. Reflita também que estamos a falar de tradições iniciadas por um ou outro nome famoso, mas se estenderam muito além dele, atravessaram séculos, participando de todas as fases da Grécia até o período da tirania cristã, superando esta, alcançando o medievo e finalmente chegando nos tempos modernos.

Podemos sim estar fartos de discursos vazios só para exibir academicismos pela Internet, porém, na vida “real”, sabemos o quanto faz falta uma abordagem com intenção sincera de desenvolvimento pessoal e coletivo rumo a uma sociedade mais justa e pacífica.

"Dentre todos quantos o conheceram, os que amam a virtude não cessam de lamuriá-lo qual o melhor auxiliar à prática do bem. Quanto a mim, que o vi tal qual o pintei: devoto, de nada fazer sem a concordância dos deuses; justo, de jamais causar o menor mal a ninguém, e sim, ao contrário, prestar os maiores serviços aos que o frequentavam; íntegro, de jamais preferir o agradável ao honesto; prudente, de jamais enganar-se na apreciação do bem e do mal, capaz de compreender todas estas noções, explicá-las e defini-las; hábil no julgar os homens, apontar-lhes suas faltas, conduzi-los à virtude e ao bem(...)

(Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, Xenofonte)