Os Deuses não sabem que é você!

A.Demétrios H.S.R.

1/16/20245 min read

Calma, eu explico!

Quem conhece os Deuses somente através da Mitologia pura e literalmente ou através da mídia, pode ficar chocado com a chamada deste post. Ambos meios de conhecimento ilustram os deuses como se fossem pessoas iguais a nós - na forma física e na personalidade.

Por que compartilho este tema? Porque predomina no meio neopagão a visão de que os Deuses são realmente seres humanos, com todas as suas virtudes e defeitos, e que seríamos capazes ter um relacionamento hiperpessoal com eles. Daí decorrem as inúmeras histórias que circulam por aí sobre até mesmo manter relações sexuais com os Imortais só porque há narrativas mitológicas afins. Por isso trago um contraponto para equilibrar esse panorama. Nem só de mitologia se vivia e sempre levantarei este alerta.

Já existe um vídeo bem completo sobre a Natureza dos Deuses no Youtube https://youtu.be/pCxXKEnfCHY?si=A1ncgo7YE5pOmwrV , então vou procurar abordar o assunto por outra perspectiva.

Através das mais diversas escolas filosóficas o pensamento grego se transformou, principalmente no quesito teológico. Desde muito cedo se instaurou uma luta intelectual contra a representação antropomórfica dos deuses, considerada indigna devido ao comportamento frequentemente questionável nos mitos. Portanto, era necessário representá-los de modo mais justo a sua superioridade, uma vez que o divino era associado a Virtude/Excelência suprema.

Acompanhando o desenrolar mais naturalístico da cosmologia, a imagem dos Imortais começou a modificar-se também. A Mitologia, por parte de alguns pensadores, passou a ser abordada através do exercício de alegorização, em que as narrativas seriam puramente simbólicas e guardariam informações teológicas e cosmológicas não muito evidentes num primeiro contato.

Cito aqui algumas linhas filosóficas que dominaram a antiguidade tardia: o Epicurismo, o Estoicismo, e o combo Platonismo/Neopitagorismo/Orfismo.

A primeira, ao contrário das fake news, aceitava a existência de Deuses sim. Porém, ensinava que Eles deviam ser o máximo exemplo de bem-aventurança, radicalmente imperturbáveis. Os Deuses viveriam em outros planos da existência (intermundos, “metakosmia”) e não participariam dos acontecimentos do Cosmos, e, óbvio, muito menos ouviriam nossas preces. Os epicuristas celebravam os Deuses, no intuito de imitar sua felicidade e perfeição.

“O homem ímpio não é aquele que nega os deuses da maioria, mas aquele que atribui aos deuses a crença da maioria” (Epicuro,Carta a Meneceu)

Já o estoicismo ensina que os Imortais são atuantes na vida do Cosmos, porém em prol do Todo, zelando pela sua Ordem, pouco se ocupando com a vida particular. Para esta função, propõe que haja um Daimon guardião individual, além da faculdade Racional inerente em nós.

“O primeiro ato para adorar os deuses é acreditar nos deuses; ao lado de reconhecer sua majestade, reconhecer sua bondade sem a qual não há majestade. Além disso, saber que eles são comandantes supremos no universo, controlando todas as coisas com seu poder e agindo como guardiões da raça humana, mesmo que às vezes não sejam conscientes do indivíduo…” (Sêneca, estóico romano, 4 a.e.c - 65 d.e.c, Sobre a utilidade dos princípios básicos, 50)

Mais tarde, Marco Aurélio (121-180 e.c), um dos expoentes romanos do Estoicismo nos diz: “ Viver com os Deuses. Ele vive com os Deuses, que em todos os momentos proporcionam o espetáculo de uma alma, tanto contente quanto satisfeita com tudo o que é oferecido ou concedido a ela. E realizando tudo o que agrada ao espírito, a quem (sendo parte de si mesmo) Zeus designou a cada um dos homens como seu superintendente e governador.” (Meditações, Livro 5, cap. 21)

“(...) Mas se é verdade que eles não deliberaram sobre mim em particular, certamente deliberaram sobre o todo em geral…” (Livro 6, cap, 39)

O Platonismo dessa época, às vezes conjugado com o Neopitagorismo e Orfismo, por sua vez, ao compreender também os Deuses como Potências Cósmicas quase impessoais, estabelecem que no lugar Deles, os daimones (divindades menores) é que se relacionariam conosco. Esses Daimones seriam em parte semelhantes aos grandes Olimpianos que coordenam sua Linhagem/Corrente, e não os Olimpianos de fato. Plutarco, na sua obra “Isis e Osiris”, serve-se deste argumento para avaliar certos festivais da época, que julgava objetáveis: que na verdade seriam dirigidos a daimones “malévolos e sombrios”. Ainda do círculo platônico tardio, mais especificamente entre os adeptos da Teurgia, , há uma narrativa de que o sábio Plotino teria um deus como guardião, e não um daimon comum como esperado. Por sua vez, Plotino é marcado por traços especiais desde seu nascimento e conhecido por grande sabedoria.

Essas eram as tendências teológicas nos tempos mais tardios, cada vez mais preponderante a impessoalidade divina acompanhada de arranjos que a amenizam. Os Deuses nos conheceriam apenas como representantes genéricos da Ideia de Ser Humano. E a depender da corrente filosófica, se admitiria a crença em daimones como seres mediadores, e que nossa experiência, ou ao menos das pessoas comuns, se daria com essas divindades menores.

E qual seria então o objetivo dos rituais se esses Deuses são distantes? Cada corrente filosófica tem seu posicionamento, mas algo em comum é que o rito justamente nos purifica, nos aproxima do divino e abre caminho para recebermos suas bênçãos. Daí pensar numa Relação com os Deuses, e não em Relacionamento. O segundo termo teria uma carga mais pessoal.

Angelos Nasios trouxe esta reflexão em seu artigo para o site Patheos, intitulado “ Não temos relacionamento com os Deuses, ou temos?” (original e completo aqui https://www.patheos.com/blogs/agora/2017/07/hearth-hellenism-2/ ). Compartilho algumas passagens-chave :

“Em vez de relacionamentos , o que temos são relações com os Deuses. Há uma diferença, o primeiro é social/interpessoal, enquanto o segundo reflete interações, não precisando ser entre pessoas. (...) Dirigi o assunto ao YSEE para sua opinião, o que me disseram é que os deuses são Όντα e não Πρόσωπα. Eles são seres e não pessoas. Temos interações com eles, mas isso é definido como contato (επαφή). Entendo esta afirmação como dizendo: você não pode ter relacionamento com os Deuses porque eles não são pessoas, o relacionamento ocorre entre pessoas. As relações humanas têm limitações, regras, etiqueta e expectativas. Esse tipo de coisa não pode ser esperado de um Deus; portanto, um relacionamento não pode ser mantido. (...) Não podemos chamar a nossa experiência como relacionamentos com os Deuses, assim como não podemos chamar a minha experiência com o Sol de relacionamento. Sinto a luz do sol sobre mim e ela vai me queimar quanto mais tempo eu ficar do lado de fora. Isso é relação, não relacionamento. Posso pegar a luz do sol e fazer coisas com ela, posso capturar a luz e guardá-la em uma bateria. Também posso ampliar a luz com uma lente e acender um fogo com ela. Tal como o sol, com os Deuses, podemos sentir o seu poder mover-se através das nossas vidas, mas ele não forma uma relação como muitas vezes pensamos. Nessa visão, é uma experiência unilateral, a nossa experiência.”

Contudo, isso não significa que experiências pessoais com os Deuses deixaram de existir.. Existe algum relato ou outro, e nem tudo foi registrado e preservado (por exemplo, pesquise sobre Aelius Aristides, séc.2 E.C e sua relação com Asclépios). E existia uma profusão de cultos de Mistérios para todos os gostos, em que experiências proporcionavam um contato mais íntimo como divino.

Devemos lembrar que a falta de dogma universal proporcionou aos antigos certa liberdade de crença, desde que mantivessem os ritos ancestrais. De qualquer forma, fosse no mundo antigo ou moderno, qualquer um pode alegar qualquer coisa sem comprovação e devemos sempre manter o espírito crítico. E as redes sociais já nos colocam diante de narrativas modernas um tanto… suspeitas. A questão aqui não é nos tornarmos censores da vida devocional alheia, mas sempre penso nos novatos e o risco que correm caso caiam nas mãos de charlatães que alegam poderes ou lugares especiais perante os Deuses.

Essas teorias podem causar enorme estranheza num primeiro momento e nos fazer questionar sobre nossas experiências. Pessoalmente, não as rechaço por inteiro, mas procuro lembrar do “caminho do meio” sugerido por Aristóteles e utilizá-las para balizar aquilo que vivencio, me mantendo no “Metron”, a Medida justa, tanto para não cair no ceticismo radical nem na credulidade irracional.