Sobre o Daimon pessoal no Helenismo

Existe a crença em espírito guardião de um indivíduo na religião helênica? Trato deste tópico polêmico aqui neste artigo.

7/17/20236 min read

Texto de A.Demétrios H.S.R, dirigente do thíasos Hierokrithari.


Os Daimones,como uma categoria divina dentro da teologia helênica, fascina qualquer um, e faz parte da nossa vivência religiosa.


Contudo, esse termo, Daimon, podia ter vários sentidos, o que pode causar confusão em que lê os autores antigos sem analisar o contexto onde surge essa palavra. Como já explicado nos meus vídeos anteriores, Daimon já foi utilizado como sinônimo de Theos, ou deus; já se tornou uma categoria independente de seres divinos, ocupando uma posição inferior a dos Theoi, os Deuses maiores do panteão, e ora era usado como sinônimo de destino, ao lado das Moiras ou Tyche, a fortuna.


Divindades Guardiãs nos Mitos:


Homero, na epopéia, geralmente ilustra um deus olímpico a guiar um herói, ou seja, alguém de destaque e de existência necessária para o desenrolar da história. Homero usa o termo daimon como sinônimo de deus,e não como categoria diferenciada.


Hesíodo já nos traz um mito mais frutífero sobre o assunto: No mito das Idades do mundo, Hesíodo conta da primeira raça de seres humanos,feita de ouro,no tempo em que Cronos reinava. Era a estirpe mais feliz de todas,livre de qualquer preocupação ou sofrimento. Quando essa geração abençoada foi coberta pela terra, por vontade divina eles se tornaram daimones benéficos,guardiões dos homens, distribuindo riquezas, porque sua honra era a mesma de verdadeiros reis. Depois, nos Trabalhos e Dias, quando trata da Justiça, Hesíodo relembra os daimones guardiões,em número de 30 mil. E, claro, este poeta já apresenta uma relação mais pessoal entre deus (as Musas) e devoto que não pertence a nobreza homérica.


Aqui Hesíodo vai direto ao ponto, no entanto,ele fala de guardiões da humanidade como um todo, não necessariamente ligados a uma pessoa em especial.


Daimones guardiões na filosofia:


O poeta Píndaro e o filósofo pré-socrático Heráclito, quando tratam dos daimones pessoais, na verdade utilizam esse termo no sentido de Fortuna ou destino do que um ente divino guardião propriamente dito.


Heráclito diz que o “ethos, ou o caráter,é o daimon do homem”. Ou Nous, a compreensão intelectual, é divino e é o nosso daimon. O platonismo,por sua vez, reconhece essa mesma força daimonica interna, que habita nossa cabeça, e se esforça em nos alinhar como que é divino e virtuoso.


Na sua obra Timeu, Platão diz:


“E com relação à mais nobre de nossa alma, devemos concebê-la desta maneira: declaramos que o Divino deu a cada um de nós,como seu daimon, esse tipo de alma que se aloja no alto de nosso corpo e que nos eleva - vendo que não somos uma planta terrestre, mas celestial- desde a terra até nossa espécie no céu”.


A multivalência do termo Daimon persiste nas futuras correntes filosóficas, ao abordarem o assunto, e temos naturalmente algumas concordâncias e discordâncias. Uma das concordâncias é de que, quando se trata de um daimon pessoal, ele na verdade é um agente, uma entidade interna do ser humano.


Os platonistas se referem a esse daimon como Idios Daimon, Eauto Daimon ou Oikeios Daimon, “o regente da casa”, mais utilizado entre neoplatonistas que se utilizavam da Astrologia. Eudaimon e Genetisios daimon são outros termos alternativos.


Na literatura platônica com frequência se recorda de Sócrates e a voz que ele ouve quando precisa evitar alguma ação.


O estoicismo ensina algo semelhante, ao propor que há o Logos do cosmos, ou Razão que dirige tudo, e inclusive habita em nós uma centelha desse Logos,que seria a parte diretora de nosso ser. Por isso a ênfase em viver conforme a razão, porque é divina e orienta-se para o que é bom e perfeito.


Um dos mais famosos romanos adeptos do estoicismo, o imperador Marco Aurélio, em suas Meditações (Livro V, 21), diz: “Viver com os Deuses”. Ele vive com os Deuses, que em todos os momentos lhe proporcionam o espetáculo de uma alma, tanto contente quanto satisfeita com tudo o que é oferecido ou concedido a ela. E realizando tudo o que agrada ao Espírito a quem, (sendo parte de si mesmo) Zeus designou a cada um dos homens como seu superintendente e governador.”


Apesar dessa identificação do daimon pessoal com uma força interna do homem, uma parte autônoma ou não,tanto o platonismo quanto o estoicismo concordam que existam daimones como seres divinos externos e autônomos que podem agir sobre a humanidade.


Diógenes Laércio, ao tratar dos estóicos gregos, registra que:

“Eles também sustentam que existem daimones que simpatizam com a humanidade e cuidam dos assuntos humanos. Eles também acreditam em heróis, isto é, nas almas dos justos que sobreviveram a seus corpos.” (Vida dos Ilustres Filósofos, livro 7, Vida de Zenon, 151).


No Orfismo, há um hino dedicado ao “Daimon”, que por sua vez é identificado com Zeus.


Na religião em si pouco ou quase nada há de referências de culto a daimones pessoais. O Agathos Daimon é originalmente um ente em forma de cobra que zela pelo lar. Ele é ora identificado com Dioniso ou Zeus a depender do contexto. A cobra como um ente doméstico surge em outras culturas também, e o Agathos Daimon pode ser uma manifestação desse culto ancestral. Alguns o relacionam ao igualmente serpentino Zeus Ktesios. Segundo estudos, foram em tempos tardios romanos que passaram a designar um daimon pessoal como Agathos Daimon, transliterado como agathodaemon. Agathos Daimon significa “ o bom espírito”, é mais um título, logo, não é difícil imaginar o motivo da grande variedade de sincretismos.


Em resumo, porém não pretendendo encerrar o assunto, podemos pensar o seguinte: existe um daimon interno, como função diretora da alma,que nos auxilia a seguir a Razão. Pode ou não ser uma entidade autônoma, que, no entanto, está ligada a nós, ou melhor, presa. E pode ser, Ela mesma, a Razão que habita em nós, pura e simplesmente; em termos modernos, voz da consciência. Em segundo, um daimon, enquanto um divino ser exterior e autônomo pode sentir afinidade por nós e se tornar nosso guardião, temporariamente ou até o fim de nossa vida. O tipo mais popular de daimon, por exemplo, é a categoria das ninfas, divindades residentes do mundo natural à nossa volta. E a elas sim é documentado culto por todos os lados. Supondo que você viva na zona rural ou tenha acesso regular a um ambiente natural, é bem possível estabelecer um culto e amizade com uma ninfa ou várias e elas resolverem retribuir com boas influências sobre sua vida.


Sobre a proteção pessoal exercida por um grande deus olímpico, sugiro que assista ao meu outro vídeo já dedicado ao assunto.


E terceiro, o Agathos Daimon, aquele que zela pelo lar e pela família inteira, um protetor coletivo.


Então, no mínimo,teríamos três tipos de daimones em nossa vida para buscar um contato mais pessoal: o “daimon” interior; um possível daimon guardião obtido ao longo da vida; e o Agathos Daimon, a ancestral cobra doméstica.


Como estabelecer contato com esses daimones guardiões?


Da mesma forma que se estabelece uma relação com qualquer divindade no helenismo: através da prática das oferendas regulares. O Agathos Daimon possui um dia para Ele no calendário ateniense, todo segundo dia lunar.


Quanto ao culto ao possível daimon pessoal, segue o mesmo procedimento, porém escolha uma imagem cultual que facilite a interação. Faça pesquisas dentro da iconografia helênica, podendo representá-lo de forma antropomórfica ou não, como ocorre com alguns deuses (por exemplo, usar uma pedra com algum formato especial,como acontece com Apollo Aguieus). E,por que não, se valer de mais uma representação de cobra para seu culto doméstico.

Para saber se há mais algum daimon exercendo funções protetivas, aconselho o uso de oráculos.

Outras publicações sobre os Daimones e devoção pessoal:


Sobre os Daimones no mundo helênico

p1https://youtu.be/KN7JADB2Iek

p2https://youtu.be/u6mz-Z6dG7I

p3https://youtu.be/_eRTloe2sRk


Religião helênica e relação pessoal com os Deuses https://youtu.be/21Hl9N5mE20


Bibliografia consultada:


Burket, Walter. A religião grega na época clássica e arcaica. Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

“Daimon in ancient greek religion”. Disponível em https://www.hellenicgods.org/daimon-in-hellenismos Acesso 22 fev 2023

Diógenes Laercios. Lives of Eminent Philosophers. Disponível em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0258%3Abook%3D7%3Achapter%3D1 Acesso em 22 fev 2023.

Dvorak, Jacob. The Philosopher Within: The daimōn in Plato. Disponível em https://www.apsu.edu/philomathes/DvorakPhilomathes2019.pdf Acesso em 22 fev 2023.

Greenbaum, Dorian Gieseler. The Daimon in hellenistic astrology. Brill, 2015.

Harrison, J.E. “Prolegomena to the Study of Greek Religion”. Cambridge, 1903.

Hesíodo. Trabalhos e Dias. São Paulo: Martin Claret, 2010.

Marco Aurélio. Meditações: o diário do imperador estóico. São Paulo: Citadel Grupo Editorial, 2021.

Nilsson, Martim. P. “Greek religion”. Columbia University Press, 1940.

Pachoumi, Eleni. The religious-philosophical concept of personal daimon and the magico-theurgic ritual of systasis in the greek magical papyri. Disponível em https://www.academia.edu/11807870/_%CE%A4he_Religious_Philosophical_Concept_of_Personal_Daimon_and_the_Magico_theurgic_Ritual_of_Systasis_in_the_Greek_Magical_Papyri_Philologus_2013_157_1_46_69 Acesso em 22 fev 2023.

Rassis, Vlassis. Sobre os deuses protetores no politeísmo europeu. Disponível em http://www.rassias.gr/9018.html Acesso em 22 fev 2022